Paixões, ruas e ladrilhos


Talvez a parte mais agradável de minha jornada até aqui tenham sido minhas paixões, principalmente os caminhos pelas quais elas percorreram, e não os finais que tiveram. De todas essas ruas ladrilhadas de histórias e sentimentos, paixões e desilusões, três foram as que mais influenciaram na pessoa que sou hoje.
A primeira, e mais inocente, data do meio de minha infância, talvez tivesse pouco mais de 9 anos quando a vi, Maria, pela primeira vez. Tornamo-nos amigas, apaixonadas por leitura e por gatos. Ela era a garota estranha da sala, usava óculos, não era necessariamente popular entre os garotos, como outras colegas de nossa sala. Lembro-me do dia no qual escrevi uma pequena carta apaixonada. Talvez não fosse a mais original, mas no ápice de minha inocência não pensei nisso, apenas queria demonstrar meus sentimentos, da maneira que apenas uma criança pode expressar. Ela respondeu então com uma outra cartinha. Não lembro o que dizia, as ondas do tempo já apagaram da minha mente boa parte do que aconteceu naquela época e das memórias com Maria, mas uma memória sobreviveu: o sentimento de ser correspondida de alguma forma; as lágrimas escorrendo pelo meu rosto, sinceras e inocentes, como toda criança. Lembro-me de, em um dia qualquer, catar flores e fazer um grande buquê, que levei para a escola escondido na mochila, tomando todo o cuidado do mundo para não amassar, e, no intervalo, coloquei debaixo da carteira dela. Talvez ela soubesse que fora eu. Talvez todos soubessem que tinha sido eu; meu rosto corado entregara. Para mim, apenas estar do lado dela, sentada, durante o recreio, era como estar enrolada num grande e macio cobertor. Era inocente demais para entender o que aquilo significava. Eventualmente a vida nos separou, seguimos caminhos diferentes, paralelos, havia perdido de vista o primeira grande paixão de minha vida, como quem perde uma folha no vento. Mas com ela também se fora a inocência de uma primeira paixão, de sentir a palpitação no coração pela primeira vez e se sentir confortável ao lado de alguém. Não mantive contato com ela, apenas a observei de longe, enquanto ela se tornava um cisne, sobrevoando um lago numa coreografia meticulosa e bela, mas, sobretudo, inocente.
Alguns anos depois, ainda sonhando em reaver a inocência perdida, mas já com 12, encontrei minha segunda grande, senão a maior, paixão: Lisa. Era a garota nova na escola, meu primeiro dia de aula, não conhecia ninguém. Era uma escola rígida, diferente das que havia frequentado antes, e o primeiro dia fora, algo que até então era atípico, solitário. Sentei-me sozinha no intervalo - não havia conseguido me enturmar com ninguém, diferente do outro garoto que entrou junto comigo naquele ano, e que vai se tornar peça fundamental em algum momento à frente - e, em minha direção vieram duas garotas, melhores amigas. Uma delas era Lisa, com um semblante caótico e que inspirava independência. Me encheram de perguntas: do que eu gostava, minha cor favorita, que tipo de músicas escutava. Ela fora, junto com sua amiga, a primeira pessoa a me notar naquele dia. Ela era como uma tarde de sol em meio a um campo de flores coloridas, espalhadas ao acaso: era cativante, caótica e bela. Passávamos os intervalos das aulas sentadas atrás do pátio da escola, onde o sol das quatro da tarde esquentava nossos corpos em meio a ventania que ali geralmente fazia. Conversávamos sobre as séries animadas que assistíamos, e sobre as brigas que aconteciam em nossa sala. Minha admiração por ela crescia a cada dia, mas assim como durante paixão por Maria, não entendia o que realmente significava aquilo. Estar do lado dela, mesmo que não fosse algo recíproco, fazia meu coração ficar quente. Por muito tempo fomos amigas, nutria em meu peito aquele amor platônico, que satisfazia minha alma, cujo sentimento por si só já bastava. Mas aquele sentimento idealizado por fim levou à um grande buraco nessa rua de ladrilhos. Ela era independente, e, talvez isso tenha ferido meu ego de alguma forma, talvez por ser algo que eu não conseguia ser. O estopim de tudo fora ela pintar o cabelo. Ela havia, por fim, se distanciado da Lisa que eu conhecia, idealizada. Não era mais a Lisa pela qual me apaixonara. Num acesso de raiva, disse coisas pelas quais nunca vou conseguir me perdoar, afinal, naquele momento ela deixara de ser minha musa. Agi no calor do momento, arrogante como sou. Não conseguia olhar para aquele rosto mais, não aceitava aquela desilusão. Não aceitava mais a independência que até então me fascinava, a espontaneidade que até então me apaixonava. Segui com aquele sentimento repulsivo dentro de mim por alguns meses, e, senão fosse por ações dela, eles teriam permanecido comigo até hoje. Talvez, de todos os ladrilhos, de todas as ruas, o acontecimento que me fez aceitar a desilusão e repensar minha arrogância tenha sido o ladrilho mais importante. Durante os meses seguintes, várias de nossas colegas debutavam, e com isso, vieram as festas. Numa delas em específico, que também há de retornar durante minha terceira grande paixão, aconteceu algo que, no momento, me deixou estupefata. Não conseguira olhar para o rosto de Lisa pelos últimos meses, e então, ela, ali, semiembriagada, mas ainda linda e com olhos como pequenas bolas de mogno, pediu para conversar comigo. Ela me arrastou para o quarto da chácara onde ficavam os pertences dos convidados, e, entre a bagunça de toalhas e mochilas, havia uma cama. Sentei, e ela sentou ali ao meu lado e começou a se desculpar, como se fosse culpa dela nossa amizade ter se desfeito. Lembro de sua voz chorosa, e de quando ela levantou e pediu um abraço. Aquele abraço talvez não tenha durado mais que alguns segundos, mas dentro dele uma eternidade inteira existiu, como se remendando as feridas que eu mesma tinha aberto. Era, afinal, na sutileza de Lisa em que residia sua exuberância. Foi como se tivesse voltado de uma longa viagem, reencontrado uma pessoa que há muito não via. A partir de então, tudo havia de se consertar, certo? Infelizmente as coisas não tomaram esse rumo, e, apesar de continuarmos convivendo juntas e mantendo certa amizade, eu já não me sentia digna da amizade de minha musa. Fui lentamente me afastando, aquele perdão era a prova cabal de que ela era uma alma superior a minha, que, egoísta, havia criado toda a confusão. Assim como Maria, a acompanhei de longe, admirando os quadros que pintava nas peles das pessoas, espelhos que refletiam as almas dos quadros, mas também a alma da própria artista. De vez em quando me pego sonhando com ela, divagando se um dia terei coragem de falar novamente com a artista de almas, independente e caótica.
Por fim, minha última grande paixão, e talvez a mais delirante de todas, Luísa: a única onde o final da jornada foi mais importante pra mim do que todo o caminho, e também a única que se concretizou como amor. Ao contrário de Maria e Lisa, essa paixão não surgira espontaneamente, fora criada, e, portanto, fora projeto de ambas as partes, que eventualmente se transformou num relacionamento. Nasceu da mentira, do desejo, afinal, era conveniente que ficássemos juntas: eu delirava por Lisa, e Luísa acabara de terminar um relacionamento com um amigo, além de ambas sermos vistas como perfeitas uma para a outra por nossos colegas. Porém, com a comodidade daquele relacionamento criado também vieram também duas coisas que não esperava: o amor e a saudade. Me acostumei com aqueles abraços quentes, com seu corpo e seu toque, seu jeito de falar. Mesmo que imperfeita, ela era perfeita dentro daquele lapso de tempo, e era o que importava. A ideia infantil e inocente de que apenas estar ao lado da pessoa era suficiente pra nutrir minha felicidade já não existia. Meu corpo precisava dela, como um órgão que falta. Fora com ela, naquela festa, onde se sucederam os eventos com Lisa, que dei meu primeiro beijo. Fora com ela que pela primeira vez me senti confortável para abrir meu peito sobre minhas dores. Mas, apesar de tudo aquilo, do relacionamento que mantínhamos, o sentimento não era recíproco. Por mais de uma vez ela encontrou conforto em outros corpos, outras pessoas, principalmente com o garoto que, citado mais cedo, entrou comigo naquela escola. Ela me tinha em suas mãos, e, por não conseguir sobreviver sem esse órgão que fora arrancado de mim, esse tijolo que me sustentava, não vi outra opção senão aceitar: ela há de achar conforto em outros corpos, outras pessoas. Me senti traída, mas impotente para fazer algo. Eu precisava dela, e ela sabia disso, e usava disso. Naturalmente não era mais do que um drama adolescente, mas a dor, por mais boba que seja sua causa, ainda existe, não deixa de doer. Vivi por alguns anos convivendo com essa dor, sendo usada. O fim, mais importante que todo o percurso, porém, se deu graças à uma pessoa até então alheia a tudo isso: uma de minhas irmãs mais velhas. Era um simples ultimato, mas que fora suficiente para que eu entendesse: “ou você mostra pra ela a mulher que é, ou continua vivendo na mentira e escondendo isso”. Aquela era a ultima corrente que me prendia, não só à Luísa, mas a mim mesma, que, enfim, havia me tornado mulher aos olhos dos outros. Lembro de quando tudo finalmente terminou. Um último abraço, e ela, inocente do que ia acontecer, do que eu havia planejado, havia pedido, mais uma vez, para que voltássemos a namorar. Sussurrei em seu ouvido “Não, nunca mais”, o sorriso em meu rosto indo de lado a lado, finalmente livre. “Você é mau” fora a última coisa que ouvi dela naquele dia, em tom choroso. Talvez eu tivesse agido de má fé, deixando que ela se iludisse por um breve momento antes de trazer tudo abaixo. Talvez, por um breve momento tenha agido como ela, como uma forma infantil de vingança fria.
Diferente de Maria e Lisa, não acompanhei Luísa, e, por onde quer que ela esteja agora, que esteja bem, mesmo que suas correntes tenham me prendido, cortado meus pulsos e canelas e me causado dor. Ela é importante, assim como minhas outras paixões, e não me arrependo do que senti por ela. É apenas uma infelicidade que as coisas tenham acontecido como aconteceram
Inocente, independente e instigante, e vital. Talvez seja adequado listar assim minhas paixões, mas também as partes de minha vida que elas vieram a representar. De alguma forma, ainda enxergo paixões como uma criança inocente, que idealiza ver o pôr do sol com uma Maria, sentadas debaixo de uma árvore, com cheiro de primavera no ar. Ainda quero alcançar a confiança e independência de Lisa, com seu cabelo azul e traços em tinta que a tornam minha musa, e, por fim, desejo nutrir por alguém o amor que nutri por Luísa, ter a saudade e a necessidade desse alguém na minha vida, mas sem me sentir presa por correntes e pela própria necessidade.
Por fim, ainda hei de percorrer e ladrilhar muitas estradas, e, com alguma peripécia improvável do destino, talvez ache a pessoa que há de me completar, e ser completada por mim. Até lá, continuarei ladrilhando minhas paixões.